quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

"Mortos, somos invencíveis"





"Nem venham com esquemas freud-psicanalíticos sobre a obsessão de Mishima pelo suicídio. De que valem esses esquemas no interior de um grupo social onde o suicídio não é um fenômeno patológico, uma carência, mas o sinal de uma plenitude, como entre os antigos filósofos estoicos gregos e romanos, que viam na autoimolação uma afirmação dos poderes da consciência sobre os acasos do destino? Narcisismo. Sadismo. Masoquismo. Reacionarismo. As palavrinhas terminadas em "ismo" com que tentamos dar algum sentido à nossa pobre vida feita de alguns lucros e vagas esperanças não fazem nenhum efeito nos músculos poderosos de Sensei Mishima.
Guevaras, Mishimas: mortos, somos invencíveis."
- Paulo Leminski

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

O Brasil está sob uma Guerra de 4ª Geração


Passada a condenação em segunda instância de Lula, que constrangedoramente jogou fora a decisão de Sérgio Moro substituindo-a por outra com fundamentação completamente diferente, não foram poucas as análises à esquerda, à direita, e mesmo à terceira e quarta via. No entanto, surpreende a escassez de apontamentos do aspecto mais crucial envolvido, que na realidade é o verdadeiro motivador de todo o processo contra o ex presidente, do impeachment, do próprio Petrolão e mesmo das Jornadas de Junho de 2013.
Se Lula é culpado ou não é absolutamente irrelevante! Pois mesmo que de fato fosse autor do maior esquema de corrupção de todos os tempos, este jamais viria a tona e seria punido se não interessasse à certas forças transnacionais, e mesmo que ele fosse completamente inocente, essas mesmas forças forjariam as evidências do modo como melhor lhes conviesse. A julgar pela vacuidade espantosa do processo que exigiu a reedição da Teoria do Domínio do Fato, quase unanimemente condenada por juristas como inapropriada para tal abordagem, [1] a realidade parece mais próxima da segunda possibilidade.
Também é irrelevante se Lula se aliou ou traiu as elites brasileiras, pois estas jamais seriam capazes de fazer qualquer coisa sem o mando e o condão de seus cafetões boreais. O agronegócio latifundiário, herdeiro mais antigo da demoníssima trindade dos inimigos internos do desenvolvimento nacional, tentou em mais de uma ocasião sabotar o governo Dilma, a exemplo da patronal "greve dos caminhoneiros" de 2015, sem sucesso, e o segundo componente dessa trindade, a grande mídia, tenta derrubar Lula desde seu primeiro mandato também sem sucesso. Portanto, o fato destas elites serem contra ou a favor do ex presidente por tal ou qual motivo é secundário para uma devida compreensão do que realmente ocorreu. [2]
E o que tivemos foi exemplo do que alguns denominam de Guerra de Quarta Geração, um processo de desestabilização do país, utilizando principalmente desinformação, criação ou cooptação de movimentos sociais, ataques especulativos, manipulação midiática e intervenção cibernética na internet, visando uma convulsão popular que force a conjuntura política do país a se mover em direção aos interesses ideológicos do país interventor. No caso ao modelo liberal estadunidense.
Diferente das Revoluções Coloridas que estouraram no Oriente Médio, ou a comoção social que está sendo produzida na Venezuela, a versão brasileira teve como motivação inicial farsesca os 20 centavos das Jornadas de Junho e Julho de 2013, que no entanto permaneceram mesmo após a suspensão do aumento e depois degeneraram no maior caos de nossa era em todo o país sem qualquer pauta objetiva discernível e nenhum resultado prático previsto. Posteriormente veio a Operação Lava Jato, imediatamente após o esquema de espionagem descoberto na Petrobrás, vieram os movimentos pelo impeachment e por fim foi alçado ao poder um governo incomensuravelmente mais corrupto que o anterior, levando a uma crise econômica muito pior, mas totalmente comprometido com a pauta liberal dos EUA. [3]
Mas o que ocorreu no Brasil não só pouco deve aos meros interesses de setores nacionais ou de classes internas, embora se alie oportunisticamente a elas, como sequer é uma novidade. Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek também foram sistematicamente denunciados por corrupção, o primeiro só não chegou a ser preso, julgado e provavelmente condenado por ter optado pela via do suicídio, e o segundo, que chegou a também ser acusado de ter um triplex, escapou quase certamente pelo fato da permanência da Ditadura Militar ter tornado desnecessário tirá-lo da próxima disputa presidencial, onde também liderava as intenções de voto. Mas quando as possibilidades democráticas começavam a ser vislumbradas no horizonte, JK foi, como se sabe hoje, assassinado, após difamação sistemática como também ocorreu com Getúlio e ocorre com Lula.
E estes três governantes, além de Dom Pedro II, tem em comum o fato de serem extremamente populares, e populistas, terem sido Nacional Desenvolvimentistas, ainda que com estilos diferentes e todos questionáveis, e terem tido destinos trágicos. Mas talvez somente o primeiro possa ter sua derrocada debitada quase que inteiramente na conta de "forças ocultas" internas. Os demais se viram em conflito direto contra interesses estrangeiros que são os verdadeiros responsáveis pelos processos que os derrubaram ou instalaram a Ditadura de 1964.
O verdadeiro ataque vem de fora, uma violação direta da soberania nacional, e vários órgãos nacionais e internacionais bem como governos não aliados aos EUA denunciaram isso abertamente. [4] Nenhuma análise que pretenda compreender os motivos do impeachment de Dilma e do julgamento de Lula será mais que demagogia e ilusão se não levar esse fato em conta como fator principal.
Os fatos que temos presenciado há quase 5 anos no Brasil, e em vários outros países, menos tem a ver com as máscaras do "combate à corrupção", protestos massivos de jovens alienados crendo lutar uma batalha épica contra o mal justo na melhor fase sócio econômica que o país conheceu em meio século, ou maquinações e traições de nossa pérfida elite anti-nacional.
Tem muito mais a ver, como muito insistiu o jornalista Pepe Escobar, replicando artigos em outros idiomas inclusive no Pravda russo, com retirar o país da aliança eurasiana do BRICS, afastando a evidente influência que os maiores adversários dos EUA tiveram no país e assegurando a posição cativa e subalterna do Brasil ao interesses colonialistas de Washington, ou ainda mais precisamente, Wall Street e as oligarquias plutocráticas que o controlam. [5]
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Notas
1 - É verdadeiramente difícil achar algum jurista que concorde explicitamente com a aplicação da Teoria do Domínio do Fato no caso da Ação Penal 470, especialmente depois que o maior expoente mundial no assunto, o jurista alemão Claus Roxin, do país onde ela foi criada e é mais utilizada, recriminou abertamente sua aplicação pelo STF. O assunto é complexo, mas pode-se dizer que orbita em torno da imputação penal de crimes violentos por instituições inteiramente ilegais em geral de teor militar ou paramilitar, visto que a referida teoria foi na realidade criada para julgar os crimes praticados pelos Nazistas, e posteriormente, na América Latina, para os crimes contra a vida da Ditadura Argentina e do ex-presidente peruano Alberto Fujimori pelo uso de aparato militar contra opositores. Parece haver um consenso de que a utilização da Teoria do Domínio do Fato para prática de corrupção dentro de organizações civis legais não é sustentável.
2 - Essa demoníssima trindade é constituída de: 1) segmentos do macro agronegócio comprometidos com a manutenção do país como uma eterna colônia agropecuária, sendo portanto o setor mais antigo, que remonta aos primórdios coloniais e passando pela política Café com Leite; 2) a grande mídia de massas, historicamente alinhada ao primeiro e opositora de todas as iniciativas de desenvolvimento do país; 3) o setor financeiro bancário rentista, agraciado pelas altas taxas de juros que garantem aos bancos serem o único setor praticamente indiferente às variações recentes de conjuntura política, e por isso mesmo o que menos se interessou em desestabilizar a economia nacional.
3 - Fernando Haddad chegou a dizer que Dilma e Lula foram alertados por Vladimir Putin e Recep Erdogan, que resistiram a tentativas de desestabilização similares em seus países, a respeito de movimentação anormal nas redes sociais sugerindo abordagens similares às que foram usadas contra a Rússia e Turquia, além de outros países que não resistiram ao ataque. Embora ele não apresente evidências, há quem corrobore suspeitas similares como o jornalista norte americano radicado na Alemanha F. William Engdahl, que apontou a "coincidência" de que foi logo após o vice presidente norte americano Joe Biden visitar o Brasil em 2013 se reunindo com líderes da Petrobrás e fracassando em convencer Dilma Rousseff a alterar o modelo de partilha que favorecia a China, que estouraram as Jornadas de Junho, similar ao ocorrido em outros países por onde Biden passou, fazendo a popularidade da presidente despencar para menos da metade em cerca de um mês.
Também o texto https://www.rt.com/op-ed/337411-brazil-russia-hybrid-attack/ de Pepe Escobar, discorre sobre alguns elementos relevantes a esse respeito.
4 - Alguns exemplos são, mais uma vez, o jornalista brasileiro Pepe Escobar que publicou diversas denúncias a respeito em vários órgãos de imprensa internacionais, em especial o texto "Kill List: Smashing the 'B' in BRICS" (https://sputniknews.com/…/201606081041017686-brics-brazil-c…), cuja versão em português pode ser visto no portal do jornal russo Pravda
http://port.pravda.ru/…/bra…/11-06-2016/41140-lista_brics-0/ ou o texto "Lula and the BRICS in a fight to the death" (https://www.rt.com/…/334904-brazil-brics-lula-economy-regime), que possui uma versão em vídeo traduzido em https://youtu.be/JjK49HjPMGc.
O mesmo é dito pelo jornalista Beto Almeida em http://www.patrialatina.com.br/lavajato-quer-tirar-brasil-…/
Mas talvez ainda mais importante seja lembrar da denúncia do Wikileaks e de Edward Snowden a respeito do envolvimento do governo americano não apenas no processo de espionagem da Petrobrás, mas até mesmo da preparação da Força Tarefa da Lava-Jato. O telegrama vazado pode ser lido na íntegra, traduzido e comentado, em http://www.patrialatina.com.br/da-vergonha-mas-e-preciso-l…/
5 - Uma exposição detalhada de fatos que antecedem o Petrolão pode ser vista no texto "Do Pré-Sal ao Impeachment - O Maravilhoso Mundo das Coincidências Fabulosas" em http://www.xr.pro.br/…/Maravilhoso_Mundo_das_Coincidencias.…

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

O eterno carnaval



De fato, como se poderia tratar ainda de 'circunscrever' a desordem e encerrá-la em limites rigorosamente definidos, quando está espalhada por toda parte e se manifesta sem cessar em todos os domínios em que se exerce a atividade humana? Se nos mantivermos presos às aparências exteriores e a um ponto de vista simplesmente 'estético', poderíamos ser tentados a nos congratular com o desaparecimento quase completo dessas festas, em especial pelo aspecto 'disforme' de que se revestem, como é inevitável. Mas essa desaparição, ao contrário, quando se vai ao fundo das coisas, constitui-se em sintoma muito pouco tranqüilizador, pois revela que a desordem irrompeu em todo curso da existência e se generalizou a tal ponto que, pode-se dizer, estamos na realidade vivendo um sinistro e 'eterno carnaval'. RENÉ GUÉNON. Sobre a Significação das Festas Carnavalescas. Études Traditionnelles, dez. 1945.   



"O culto ao trabalho, a ideologia do produtivismo, a ideia, enfim, de que ano só começa mesmo na Quaresma é, tudo isso, parte da ideologia moderna que rejeitamos"



"A verdade é que, enquanto sociólogos e intelectuais deslumbrados fazem a apologia carnavalesca, o povo ou a parte maior dele odeia o carnaval"

 

"Um Momo que se senta em seu trono o ano todo devorará cada um dos filhos e foliões, sem nunca se saciar – eis a tirania de Momo, a tirania do sarcamo, do deboche, da maledicência, da sacanagem sem fim"

 
O que pensamos em escrever, mas não queremos fazer, é uma defesa das festas populares como o carnaval e, ao mesmo tempo, uma denúncia do carnaval – em pleno carnaval. Poderíamos, é verdade, falar sobre como a indústria do entretenimento sequestrou uma festa popular, o antigo entrudo português e brasileiro, aquele das marchinhas de rua e dos blocos populares, e, à maneira do que aconteceu com o futebol, o transformou em festa privada com ingressos e abadás de milhares de reais em torno de uma indústria cultural musical decadente. Mas não faremos isso.

Seria melhor escrevermos, agora fazendo o elogio, sobre como o culto ao trabalho, a ideologia do produtivismo - a ideia, enfim, de que o ano só começa mesmo na Quaresma é, tudo isso, parte da ideologia moderna que rejeitamos; do mesmo grande paradigma moderno que fundamenta os principais paradigmas políticos da modernidade (liberal, socialista e nacionalista). As festividades, o ócio, contudo, não são apenas o intervalo entre uma jornada de trabalho e outra – são parte da vida; precisamente a parte que o culto do progresso pretende suprimir. Podemos ler, para o caso europeu, o que Peter Burke escreveu sobre a cultura popular (europeia), o que Bakhtin escreveu (idem) e, assim, podemos, sem saudosismos, ter um vislumbre do que é ou o que era a cultura popular e a vida social “pré-moderna” – que ainda coexiste de diferentes formas dentro da modernidade mesma. Para fazer o elogio das festas populares, poderíamos citar aqui as Saturnálias, a Antestéria e outras tantas – citando Sir James Frazer, Mircea Eliade, Carlo Ginzburg, Georges Dumézil etc etc.

Poderíamos, ainda, falar de nossa condição colonial, de um calendário litúrgico transplantado, adaptado, de um carnaval arquetípico no qual um Rei saturnal de uma antiga era de Ouro reina durante a festa só para ser sacrificado ao final dela; poderíamos falar de um carnaval do hemisfério norte que marca e celebra o fim do inverno, o fim do gelo e que, por isso, é festa da fertilidade tanto quanto é uma festa dos mortos e que tudo isso adquire outro sentido quando é comemorado em meio ao verão subtropical, assim como ocorre, por aqui, com o Natal e o Dia das Bruxas – Papai Noel suado (sem contar o descompasso que há em celebrar um excesso carnavalesco depois do qual não há mais a abstenção de carne da Quaresma e sem contar ainda a situação deslocada de uma massa urbana produto do êxodo rural celebrando festividades de um calendário litúrgico relacionado às estações do ano e as colheitas). Poderíamos – mas não falaremos de nada disso.

Poderíamos falar sobre como, diferentemente dessa Europa pré-moderna, o Ocidente é o império do Logos, um Logos decaído (como o sol ao oeste) – império da técnica, reino da quantidade; poderíamos afirmar, como afirmaram José Carlos Mariátegui, Georges Sorel, Glauber Rocha e outros, que o povo também precisa do Mito e do Caos e sobre como essa é a pauta de diferentes movimentos identitários, tradicionalistas, pós-estruturalistas e outros tantos que, na Europa, buscam ressacralizar a vida ou subverter um projeto de modernidade; poderíamos, ainda, falar sobre como o caso do Brasil e da América Latina é curioso porque nos é imposto um modelo de Ocidente (ao qual nunca pertenceremos por inteiro) quando, ao mesmo tempo, sabemos que esse paradigma nunca penetrou a alma de nossos povos latino-americanos.

Poderíamos falar, e, agora, talvez até falemos, que é por isso que, por vezes, parece sem sentido fazer a defesa do transe, do sonho, do mito e da noite em um Brasil que já é permeado e possuído, em maior ou menor grau, pelo candomblé, o catolicismo popular e o carismático, o pentecostalismo profético e extático. Poderíamos escrever (porque sobre isso não se fala; só se escreve) sobre como o projeto iluminista de civilização ocidental com que a elite modernista tenta capturar os povos do Brasil deve ser rejeitado, no espírito do que escrevia Oliveira Viana sobre o abismo que existe entre um suposto Brasil real profundo e o Brasil positivista e burocrático.

Poderíamos, finalmente, discursar sobre como neoliberais, marxistas maoístas, esquerda burguesa e outros querem, todos, domar e domesticar um suposto Brasil arcaico, selvagem, “populista”, “patrimonialista” – e sobre como, na contramão desses e paralelo a esses (segunda voz da canção), há os que fazem o elogio do fatalismo, do misticismo e do passional.

***

Ao invés disso, diremos algo mais banal: a verdade é que, enquanto sociólogos e intelectuais deslumbrados fazem a apologia carnavalesca, o povo ou a parte maior dele odeia o carnaval: diferentes pesquisas (as quais não citaremos) mostrarão que algo entre 60% e 70% da população despreza essa erupção de força vital, esse rito de liberdade, essa bagunça catártica que supostamente contrasta com o restante do ano regido pela mecânica do trabalho e a lógica do cálculo e a razão utilitária. Seja como for, a maior parte dos brasileiros, em diferentes regiões, não sente senão asco diante desse espetáculo de turismo sexual, narcóticos, roubos e furtos, as ruas banhadas por litros de uma urina fermentada onipresente e espumante que se confunde com a cerveja enlatada de qualidade duvidosa que patrocina boa parte da festa.

Por que essa maioria recalcitrante, que descansa em casa assistindo enlatados ou novelas americanas, não deseja participar da festa da liberdade? É que o exercício mesmo da liberdade, para poder acontecer, requer alguma ordem. Chiaroscuro. E ordem é que falta – embora esteja escrito lá na bandeira nacional. Um carnaval que se prolongasse, como uma maré cheia, pelo calendário inteiro seria bastante parecido com um pesadelo e tal é o pesadelo brasileiro, que consiste em viver espremido e suado em vagões de trem e ônibus impossivelmente lotados, em meio a odores, apalpadores, tarados, o eventual peidorrento inconveniente – tudo ao longo duma jornada que pode se iniciar às cinco da manhã e se arrastar por duas ou mais horas em meio ao caos de um trânsito em transe; tudo para tentar chegar em casa vivo, abrindo caminho em meio às pistas esburacadas, as vias escuras e massas de zumbis viciados em crack, assaltantes e a orgia de violência, bagunça, sujeira, filas intermináveis e os meandros de burocracia barroca e esotérica e especulação imobiliária, corrupção policial e exploração trabalhista que acompanham o dia a dia de cada brasileiro urbano, periférico, favelado e outros tantos num frenesi de excessos e absurdos. Só resta, assim, o hedonismo masoquista, a promiscuidade autodestrutiva, o alcoolismo proletário, a cachaça de todo fim de semana ou de todo dia e quiçá o transe escapista da sessão ou culto do qual não falamos mais acima – ou a ilusão e a hipnose de uma mídia em transe, a pornografia soft dos vídeo-clipes e hits do momento, o desfile interminável de bundas dos programas de auditório, o humor demente e distorcido dos memes obrigatórios e a orgia de violência criminal/policial que acompanha o noticiário da hora do almoço ou a androginia mefistofélica da última celebridade polêmica que a indústria confeccionou. É o carnaval perpétuo sobre o qual escreveu René Guénon, o qual não citaremos.

Poderíamos, depois de escrever esse textão que ninguém lerá, encerrar com uma nota de otimismo e um toque de ambivalência, para mostrarmos como somos sofisticados e como sabemos que as coisas são cheias de nuances, escrevendo, assim, que as escolas de samba são, sim, um veículo para a grande máfia brasileira do jogo do bicho, narcotráfico e empreiteiras lavar dinheiro e reproduzir sua legitimação junto ao povão – mas, ao mesmo tempo, as escolas também são um espaço de socialização comunitário, de construção dum ethos identitário afrobrasileiro ligado a uma cultura periférica não individualista do samba e dos mutirões da qual também participam alguns brancos e caboclos; assim como poderíamos, também, dizer que o carnavalesco bakhtiniano serviu de interface, no Brasil, para fazer a ponte entre uma cosmovisão europeia e outra africana sobre a vida e sobre a morte, bem como outras coisas mais no mesmo espírito. Não faremos, contudo, nada disso.

Melhor seria falar de Momo, esse filho da Noite, e sobre como um Momo que se senta em seu trono o ano todo devorará cada um dos filhos e foliões, sem nunca se saciar – eis a tirania de Momo, a tirania do sarcasmo, do deboche, da maledicência, da sacanagem sem fim; melhor seria escrevermos que, para além de reafirmar o caos, o arcaico e a noite, como fazem os decadentes europeus (e precisam!), precisamos, nós outros, descobrir e construir nosso próprio Logos luminoso, achar a nossa própria ordem, com uma lógica que nela sirva; despertarmos, enfim, do pesadelo de nossa viagem noturna febril e dar a Momo o que é de Momo – mas a Júpiter o que é de Júpiter. Com as graças de Têmis.

Uma versão ligeiramente diferente desse texto foi primeiramente publicada no site da Nova Resistência- Brasil.


Imagens:
Abaixo – Pieter Bruegel. Batalha entre o carnaval e a quaresma. 1559.
Acima – Zdzisław Beksiński. Sem título. Data desconhecida (provavelmente em algum momento entre 1978 e 1998).





Uriel Irigaray

Pesquisador e doutorando em antropologia social, professor e tradutor.