segunda-feira, 2 de abril de 2018

Brasília - um desafio inorgânico


Muito se fala, na Dissidência, em estruturas sociais orgânicas, aquelas que surgem e se ordenam espontaneamente com fortes raízes tradicionais obedecendo um impulso derivado das necessidades reais e intrínsecas de uma população. Sendo assim, como a Dissidência Política do DF lida com o fato de que Brasília, que é frequentemente confundida com o próprio Distrito Federal, seja talvez uma das cidades menos orgânicas do mundo?

Brasília tradicionalmente compreende vários bairros que passaram por alterações administrativas e territoriais, mas seu núcleo pode ser resumido nos bairros Asa Sul e Asa Norte divididos pelo Eixo Monumental, onde se encontra, por exemplo, a Esplanada dos Ministérios, o Congresso Nacional e outros órgãos federais à leste da Rodoviária, o Marco Zero, ao redor do qual estão shoppings e hotéis, enquanto à oeste ficam os órgãos distritais, além de inúmeras outras instalações.
O conceito primordial de Brasília é a da Super Quadra, no qual as exclusivamente residenciais (centenas 100 a 400) são quadrados de mais de 250 metros de lado dentro dos quais se distribuem prédios horizontais de, por lei, no máximo 6 andares, ampla área verde, parques e quadras esportivas, podendo haver escolas e igrejas, mas cujo único comércio permitido são bancas de revistas. Mas em uma das laterais desse quadrado há um comércio local, de frente para outro comércio local de outra SQ, que disponibilizam serviços básicos como padarias, drogarias, bares e lojas diversas. Algumas quadras tem comércios mais especializados, como as que concentram lojas de iluminação e elétricas, nas SQS 109/110, ou lojas de informática, nas SQN 207/208.

Das demais SQ (que podem ser Norte ou Sul) as 500 são comerciais, as 600 abrangem escolas, outros órgãos públicos, hospitais ou universidades. As 700 misturam casas residenciais com comércio mais diversificado, as 800 abrangem embaixadas, clubes, o campus universitário da UnB (a universidade federal), estações de tratamento de esgoto (às margens do Lago Paranoá), e as 900 concentram universidades privadas, centros empresariais diversos, centros hospitalares e outros.
Vale lembrar que as quadras de centenas pares 200, 400 etc, ficam à leste do Eixão, que corta toda a cidade na direção Sul-Norte, ao passo que as centenas ímpares ficam à oeste, contando-se alternadamente de dentro para fora. Portanto, as 800 não ficam nada perto das 900. E as unidades só vão de 1 a 16. Portanto, não existe qualquer SQ terminada em 17 para cima. Além de excepcionalmente faltarem residências nas quadras 413 e 414 (que não tem nem comércio) pois ambas constituem o Parque Olhos D'Água.

Mas o que realmente interessa aqui é que mesmo quem jamais tenha ouvido falar de Brasília, apenas por esse breve relato, já percebeu que se trata de algo completamente diferente de qualquer outra cidade, que em geral segue o princípio de uma Igreja Matriz numa praça ao redor da qual surgiram residências e comércios que com o tempo foram se organizando sem planejamento prévio.
Brasília é uma cidade planejada desde o princípio, segundo um espírito iluminista de ordenação racional, com certa influência comunista, resultando numa organização cartesiana. Você não precisa de experiência alguma para, estando na SQN 304, ou 304 Norte, saber exatamente para que lado fica a SQS 410. Em Brasília não existe o típico "não saber onde é a rua tal", aliás, só há "ruas" num sentido informal, como a entre quadras 107/108 Sul, apelidada de "rua da igrejinha". Uma vez ciente do princípio básico, você saberá exatamente onde é uma localidade mesmo sem jamais ter passado perto dela.

É verdade que alguns aspectos ideais do planejamento originário foram descartados devido a questões materiais, bem como já havia algumas habitações prévias à década de 1960 (algumas permanecem até hoje), mas ainda assim é fato de que não há uma ampla tradição ou uma história autóctone de séculos que dê substância orgânica à cidade. Foi uma criação artificial para ser preenchida com imigrantes de diversos estados, com destaque para Rio de Janeiro e alguns estados do Nordeste.

Essa artificialidade teve como consequência uma certa aversão à cidade em seus primeiros habitantes, especialmente os cariocas, muitos tendo vindo a contragosto de uma metrópole mundialmente famosa a beira do mar, a "Cidade Maravilhosa", para um cerrado a mais de mil metros de altitude com clima e umidade por vezes comparável aos do deserto do Saara. Com isso, durante décadas a cidade apresentou a dinâmica rígida de um local de trabalho, do qual se evade nas férias ou mesmo feriados prolongados.

A ausência de um "centro" propriamente dito, os longos espaços inabitados a serem percorridos de alguns locais residenciais até o comércio, uma certa dependência maior de veículos próprios que a média das demais cidades, e até a errônea mas persistente fama da ausência de mulheres na cidade (que só foi parcialmente verdade nos primeiros anos da construção) contribuíram para reforçar essa má impressão.

Mas o importante é apontar que provavelmente não foram esses elementos isolados que conferiram essa dificuldade de adaptação, mas justo a falta de organicidade espontânea, de raízes, tornando a identificação com a cidade difícil e permitindo, incentivando e até legitimando uma onda de difamações nas mais variadas formas, indo de letras de bandas de rock, filmes ou livros onde o desprezo, se não ódio, a Brasília chegaram a configurar quase um senso comum no restante do país.
A isso soma-se o preconceito surreal de que todos os habitantes da cidade são políticos ou relacionados a eles, embora a grande maioria dos brasilienses nunca tenha passado perto de um congressista na vida ou se o tenha, não o reconheceria, ou que sejam todos funcionários públicos. Mas mesmo no recorte mais extremo, que foca apenas as áreas mais próximas das residências funcionais e ainda inchando o número com funcionários públicos distritais, trabalhadores celetistas, comissionados e cargos de confiança, estes não chegam sequer a 40% da população economicamente ativa. Na proporção geral, englobando áreas mais distantes, essa proporção cai drasticamente, e na média do DF não chega a 5%.

E apesar de tudo isso, a maior prova de que os problemas de adaptação vieram justo essa falta de organicidade, está no fato de que agora, quase 60 anos após a inauguração, a cidade já comece a ter uma tradição e algum enraizamento. Já se reconhecem gírias e até sotaques, muitos artistas brasilienses se projetaram Brasil afora, e temos uma nova geração nascida de pais e mães nativos da cidade, algo evidentemente impossível nas primeiras décadas.

É justo isso que melhora a percepção da capital pelos seus próprios habitantes, e consequentemente, sua percepção externa, demonstrando que somente um aprofundamento sócio cultural orgânico, capaz de engendrar uma tradição, uma identidade, e um senso de coletividade, pode resultar num espaço populacional digno de uma vida com significado, que transcende o mero horizonte individual e econômico, no caso do trabalhador que se via num espaço funcional onde ele apenas ganha o seu dinheiro, mas que vê sua verdadeira vida e identidade noutro local.

Ainda que sua artificialidade não seja total, visto que ainda se conecta diretamente com cidades próximas com muito maior organicidade, Brasília ainda assim serve como exemplo de um processo de criação de identidade, uma experiência que demonstra que sem raízes, sem cultura profunda, sem conexões familiares e sem tradição popular, nenhum local será digno de ser chamado de "minha terra", "nossa casa" ou "lar doce lar".

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